A imposição
de mãos outorga poder sobre a pessoa que a recebe?
A questão da imposição de mãos tem dividido os estudiosos da Bíblia e
causado uma verdadeira confusão litúrgica nas igrejas. Não é incomum encontrar
pessoas que fazem desta prática um sacramento, um ato carregado de significados
espirituais, que pode, segundo eles, transmitir poder, unção, dons e outros
carismas.
Por outro lado alguns desprezam totalmente este ato tratando-o
meramente como uma coreografia destituída de qualquer significado espiritual.
Lembrando que trataremos tão somente da imposição de mãos, do ato de colocá-la
sobre a cabeça de uma pessoa, ou, como é comum no AT, sobre um animal.
O que então significa a “imposição de mãos” nas páginas das Escrituras?
No Antigo Testamento- Na antiga aliança a imposição de mãos era uma
prática comum especialmente no cerimonial do tabernáculo e templo.
“A imposição era usada na transmissão de pecado do ofertante para um
animal. No grande dia da expiação, por exemplo, o sacerdote impunha (sãmakh-)
suas mãos sobre a cabeça do bode que teria de ser enviado ao deserto e sobre
ele confessava os pecados do povo, assim transferindo-os ao animal (Lv. 16.21)
Um rito semelhante acompanhava as ofertas queimada, pacífica, pelo pecado e de
ordenação (Lv. 1.4; 32; 4.4; Nm 8.12” (Novo Dicionário da Bíblia – Volume II –
Pg 743).
Também era comum os filhos de Israel colocarem as mãos sobre a cabeça dos
levitas que fariam o trabalho de expiação (Nm 8.10.). Assim, estes eram
separados e ordenados para o trabalho no Tabernáculo.
Em outro momento vemos Moisés impondo as mãos sobre Josué, seu ajudante,
deixando claro diante do povo que este estava sendo investido de autoridade
para conduzir o povo após sua morte. (Nm 27.12- 23).
Parece que aqui temos o modelo e a
fonte inicial que seria imitado na igreja neotestamentária para a ordenação de
obreiros. Josué, após esta imposição de mãos teve uma ampliação do trabalho do
Espírito Santo em sua vida. Em Deuteronômio 4.9, lemos:
Josué, filho de Num, estava cheio do espírito de sabe3doria, porquanto
Moisés impôs sobre ele as mãos, assim, os filhos de Israel lhe deram ouvidos e
fizeram como o Senhor ordenara a Moisés.
Podemos chamar de ampliação pois mesmo antes de receber esta imposição
Josué já estava cheio do mesmo espírito:
Toma Josué, filho Num, homem em que há o Espírito, e impõe-lhe as mãos
(Nm. 27.18).
A imposição de mãos, ilustrada aqui no episódio de Moisés e Josué, não
era aleatória, sem que o candidato a recebê-la tivesse as condições prévias
para o trabalho a ser designado. O melhor a dizer é que Josué já era cheio do
Espírito Santo, no entanto a atuação deste na vida deste jovem se amplia após a
imposição de mãos. O significado maior, no entanto, foi que a congregação
de Israel reconheceu a autoridade de Josué, delegada por Deus, através de
Moisés.
No Novo Testamento- No início da igreja a imposição de mãos
acompanhou os principais movimentos dos Apóstolos. No batismo com o Espírito
Santo, por exemplo, revela esta prática apostólica:
Então, lhes impunham as mãos, e recebiam estes o Espírito Santo (Atos
8.17).
No entanto, tudo indica que com o passar do tempo esta prática deixou de
ser essencial para que o Espírito batizasse uma pessoa. Em Atos 10, por
exemplo, Cornélio e os seus são batizados pelo Espírito Santo sem que houvesse
menção alguma da imposição de mãos:
Ainda Pedro falava estas coisas quando caiu o Espírito Santo sobre todos
os que ouviam a palavra (Atos 10.44).
Assim, a partir de então, o trabalho do Espírito Santo em uma pessoa não
depende de qualquer imposição de mãos. Nas Epístolas não existe qualquer ordem
neste sentido.
A imposição de mãos parece ter perdurado tão somente para a ordenação de
pessoas para o trabalho de Deus, o que passaremos a discutir.
Os irmãos escolhidos para o diaconato, em Atos 6, receberam a imposição
de mãos dos Apóstolos:
Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as
mãos (v.6).
Observemos novamente que eles já eram reconhecidamente cheios do Espírito
Santo antes da imposição de mãos (v.3). Este ato, no entanto, autenticou diante
da comunidade o que Deus já estava fazendo em suas vidas e deu-lhes autoridade
para o serviço que passariam a desempenhar.
A mesma cerimônia e o mesmo princípio acompanharam os primeiros
missionários (Atos 13.1-3). Deus os separa, a igreja reconhece o seu chamado,
impõe as mãos sobre eles e os envia. Nestes casos o chamamento, a fé viva, o
desprendimento para o trabalho, a atuação do Espírito Santo, antecederam a
imposição de mãos e a designação para as tarefas designadas.
Voltemos agora os nossos olhos para os três versículos que saíram da pena
do Apóstolo Paulo sobre que fazem menção a imposição de mãos:
1 Timóteo 4.14- Não te faças negligente para com o dom que há em ti, o
qual te foi concedido mediante profecia, com a imposição das mãos do
presbitério.
1 Timóteo 5.22 – A ninguém imponhas precipitadamente as mãos. Não te
tornes cúmplice de pecados de outrem. Conserva-te a ti mesmo puro.
2 Timóteo 1.6- Por esta razão, pois, te admoesto que reavives o dom
de Deus que há em ti pela imposição das minhas mãos.
Podemos dizer com certeza que o dom ministerial fora concedido a Timóteo.
A pergunta é se este dom fora concedido pela imposição das mãos de Paulo e dos
presbíteros da igreja. Seria o caso de uma transferência espiritual de um dom
do doador para outra pessoa? A vocação de Timóteo, o seu chamamento, a sua
capacitação foram advindas pela imposição das mãos do Apóstolo Paulo? Se a
resposta for positiva seria está uma regra para a igreja hoje ou ficou
circunscrita ao período neotestamentário? Não sabemos ao certo, mas podemos
lançar luzes sobre o fato:
Comparemos este episódio com o de Moisés e Josué. Assim como naquele caso
em que Josué já era cheio do Espírito é escolhido por Deus para o trabalho,
Timóteo também tivesse as mesmas qualificações, pois somos informados que ele
já era discípulo, de bom testemunho (Atos 16.1,2), de uma fé viva (2 Tm 2.5).
Assim, tanto Paulo quanto os presbíteros reconheceram o seu chamado para obra e
o autenticaram com a imposição de suas mãos.
Corroborando com este pensamento John Stott faz a seguinte observação:
Os dois versículos (1 tm 4.14 e 2 Tm 1.6) mencionam a imposição de mãos e
parecem referir-se ao que podemos chamar de “ordenação” ou “comissionamento”.
(Tu Porém – Pg 13).
A prática da imposição de mãos hoje é um sinal externo daquilo que Deus
já proporcionou na vida de uma pessoa. Ela não inicia uma vocação mas a
reconhece e a homologa diante da igreja.
Os demais líderes concordam que Deus está trabalhando na vida do noviço e
aspirante, veem nele as qualificações para o ministério e impõem as mãos
autenticando o seu chamado ou delegando-lhe autoridade. Este é o mesmo
princípio de 2 Timóteo 2.2 que diz:
E o que de minha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso mesmo
transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros.
A escolha precede a análise da idoneidade do candidato.
Assim, tal compreensão lança luz sobre a ordem paulina dada ao mesmo
Timóteo para não impor precipitadamente as mãos ( 1 Tm .5.22). Isto é, se uma
pessoa não demonstrar diante da igreja o seu chamado, vocação e compromisso,
bem como uma vida de boa reputação, não deverá receber a imposição de mãos. A
precipitação poderia fazer dos que impuseram as mãos, cúmplices dos erros do
irmão recém- ordenado.
Sobre este ponto pondera João Calvino:
Paulo proíbe admitir precipitadamente a alguém que ainda não passou pelo
rigoroso exame. Existem aqueles que, movidos pelo desejo da novidade, buscam
ordenar alguém pouquíssimo conhecido, justamente pelo fato de o mesmo
apresentar uma ou duas qualificações reconhecidas e de caráter recomendável.
É dever de um prudente e enérgico bispo resistir a esse impetuoso
impulso, da mesma forma como Paulo ordena a Timóteo. Sua intenção era mostrar
que o bispo que consente com um ato ilícito de ordenação traz sobre si a mesma
culpa de seus impetuosos fomentadores (Pastorais – Pg. 154).
Sobre a imposição de mãos de Paulo a Timóteo em 1 Timóteo 4.14, o mesmo
Calvino ainda assevera:
A imposição de mãos para consagrar um ministro, os apóstolos tomaram por
empréstimo do Antigo Testamento. Este ato é um emblema, um sinal externo do que
Deus já fez. A graça de Deus não era transmitida em virtude desse sinal, mas
era como o reconhecimento da igreja, que os elege, de que eles tinham um
chamado.
Essa cerimônia inaugural não era um ato profano, engendrado só com o
intuito de obter autoridade aos olhos dos homens, mas era um legítimo ato de
consagração diante de Deus, algo que só podia ser efetuado pelo Espírito Santo.
Timóteo não recebeu o que antes não possuía. Ele se distinguia tanto em
doutrina quanto em outros donos antes que Paulo o designasse para o ministério,
mas estes donos se manifestaram mais gloriosamente quando a função docente lhe
foi conferida. (Pastorais - 202,203).
Seria razoável então concluir que existe uma cadência que culmina com a
imposição de mãos: Os que a igreja reconhece como chamados para um
trabalho eclesiástico, que já dão prova de sua capacitação espiritual, recebem
das autoridades desta igreja a imposição de mãos em uma cerimônia de ordenação,
um emblema do que Deus já fez. Ao receber a delegação da igreja o obreiro tem
mais autoridade, talvez até espiritual, para o trabalho a ser realização ou a
função a ser exercida.
Resta ainda tratarmos da imposição de mãos na oração, visto que esta era
um prática comum no Novo Testamento (Mt. 19.15; Mc 6.5; At 9.12; 28.8; Hb
6.2).
Não existe nenhuma ordem bíblica dada à igreja para que imponha as mãos
na oração pelos enfermos. A ordem é para orar independentemente dos gestos
adotados. Nem todas as práticas da igreja neotestamentária são abraçadas hoje
pela maior parte das igrejas evangélicas.
Não é comum, por exemplo, a cerimônia do lava-pés (João 13.1-11); o uso
do ósculo santo (1 Co 13.12; 1 Pe 5.14); do uso do véu (1 Co 11.2-15),
etc. Conquanto não se constituiria pecado qualquer igreja ainda praticar tais
atos, parece não ser cerimoniais essenciais para a igreja como um todo.
Da mesma forma não haveria nenhum impedimento em se orar por alguém
impondo sobre ele as mãos, no entanto, não devemos julgar que se trata de um
ordem, ou preceito, ou mesmo que tais orações trarão um efeito espiritual
maior. Deus continua interessado no coração, no homem interior e não na forma.
É o coração contrito que encontra diante de Deus a resposta (Sl 51.17).
Mesmo não havendo uma ordem para se orar por enfermos com imposição de
mãos, este método não encontra resistência nas páginas da Bíblia. A imposição
de mãos pode trazer mais conforto ao que recebe a oração. O seu valor é muito
mais emocional do que espiritual, a não ser, que Deus em sua soberania, conceda
ao que ora a bênção de transmitir a outra pessoa, algo de sua própria vida e
saúde.
O que pode ser um ato de soberania
de Deus, mas que não encontra regulamentação bíblica alguma. O certo é que um
estudioso da Bíblia não dará tanto valor a um ato litúrgico destituído de sua
essência. Os fariseus não enganaram ao Senhor Jesus com suas longas orações com
as mãos levantadas nos lugares públicos.
Deus ainda continua vendo o que está em secreto, escondido no fundo de
nossos corações (Mt 6.5-8). Um ato litúrgico pode ter a pretensão de
representar algo mas não é o algo.
A verdadeira espiritualidade não
precisará de recursos estéticos para se revelar. A adoração e mesmo a oração
devem ser em espírito e em verdade (Jo 4.23 e 24). Um gesto penitente, como por
exemplo, ajoelhar, não atrai a simpatia de Deus se o coração não for penitente.
Devemos rasgar o nosso coração diante de Deus, sem esta contrição não
devemos nem mesmo rasgar as nossas vestes como símbolo de devoção (Jl 2.3).
Talvez seja melhor nem orar do que impor as mãos e orar sem que a vida esteja em
comunhão maravilhosa com Deus.
Conclusão
Na antiga aliança a fé era em parte alimentada pelo que se via esse
tocava. Havia muitas cores, cheiros e detalhes visuais impressionantes. Nossa
curiosidade fica aguçada quanto à forma e riqueza, por exemplo, do Tabernáculo.
Tudo ali concorria para aumentar a fé de um povo que não tinha a revelação
completa.
Na nova aliança, no entanto, os
salvos são chamados à verdades superiores, invisíveis aos olhos carnais, mas de
uma clareza solar para a alma do salvo. Assim, devemos nos ater àquilo que é
ortodoxo, que é certo, que tem um doutrinamento claro nas Escrituras e cuja
relevância é atestada.
Dentre os vários assuntos que o autor aos Hebreus afirma como princípios
elementares da doutrina de Cristo, que devem ser substituídos pelo que é
perfeito, está a imposição de mãos:
Por isso, pondo de parte os princípios elementares da doutrina de Cristo,
deixemo-nos levar para o que é perfeito, nãos lançando, de novo, a base do
arrependimento de obras mortas e da fé em Deus, e o ensino de batismos e da
imposição de mãos, da ressurreição e do juízo eterno. (Hb. 6.1,2).
A igreja pode e deve continuar impondo as mãos sobre os que foram
escolhidos para o diaconato, presbiterato, pastorado e trabalho missionário;
Podemos continuar impondo as mãos sobre os enfermos quando orarmos por eles.
Mas não sejamos inocentes biblicamente ao pensar que existe algum poder ou
unção na forma em detrimento do conteúdo. Deus saberá distinguir o obreiro de
coração aprovado do que não o é. A forma não enganará a Deus, conquanto
possa ludibriar, por algum tempo, os homens.
Pr. Luiz César de
Araújo.