“A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é o vosso
Pai, aquele que está no céu” (Mt. 23.9).
Em alguns movimentos de crescimento de igreja há uma ênfase na
questão do discipulado autoritativo, que ensina que o irmão discipulado deve
submeter-se ao discipulador como a um pai.
Neste modelo o discípulo tem entre ele e Cristo um intermediário, o
discipulador. A este se deve prestar contas quase que de tudo. É uma espécie de
patrulhamento espiritual.
A situação se agrava quando pessoas muito jovens, em idade e na
fé, se colocam como pais espirituais de outros e são treinadas para extraírem
dos discípulos confissões que estão além de suas capacidades de lidar. O alvo é
“abrir o coração” do discípulo para o discipulador. Os próprios discipuladores
são discípulos de outras pessoas, como se fosse uma corrente, e ambos são
frutos de uma “doutrinação”, que tenta coagir o agir de Deus através do
discipulado. Este sistema usa versículos
bíblicos fora de seu contexto e sem hermenêutica alguma como, por exemplo,
Tiago 5. 16 onde se manda confessar os pecados uns aos outros para serem
curados.
Não existe dúvida que tanto a confissão quanto o discipulado são
práticas cristãs e recomendadas pela Palavra; o que se deve observar, no
entanto, é que devemos fazer discípulos para Cristo e não para nós mesmos. Devemos tomar a nossa cruz e seguir a Cristo
(Lc 14.24), e não do homem. Mesmo quando
Paulo, por exemplo, ordena que os seus liderados o imitem, o faz apontando para
o final de tudo, que é seguir a Cristo (1 Co 11.1).
Stott nos ajuda com a seguinte compreensão:
Ao contrário
dos fariseus, havia três títulos que seus discípulos não deviam adotar ou
aceitar: “rabi” (ou seja, mestre), “pai” e “guia”... Deus está dizendo que
nunca devemos adotar para com um irmão na igreja a atitude de dependência que
um filho tem para com seu pai nem fazer com que outras pessoas sejam ou se
tornem espiritualmente dependentes de nós. Isso é confirmado pela razão dada
por Jesus para a proibição: “porque só um é vosso Pai, aquele que está no céu”.
A dependência espiritual é devida a Deus, nosso Pai celestial. Ele é nosso
Criador, tanto física quanto espiritualmente. Mas não temos nem devemos ter
esse mesmo tipo de dependência para com nossos companheiros, nossos guias....
Queremos ver os membros de nossa igreja crescendo espiritualmente para se
tornarem cristãos independentes, adultos e maduros, buscando diretamente em
Cristo o suprimento de todas as suas necessidades, pois “em Cristo” Deus “nos
tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual” (Ef. 1.3). Não temos o menor
desejo de manter os membros de nossa igreja perpetuamente agarrados à barra da
“saia” do pastor, ou de qualquer outro membro da igreja (gripo meu),
sempre correndo ao seu redor como as criancinhas fazem com sua mãe ... Com
delicadeza e firmeza, devemos dizer com clareza que a vontade de Deus para seus
filhos é que dependam dele como Pai, e não de outros homens....não devemos ser
chamados de “rabi”, passando-nos por autoridades em fé e prática, nem “guia”,
esperando dos homens obediência servil.... Jesus via nisso uma afronta a Deus.
Deus é o nosso Pai; Cristo é o nosso guia (Mt. 23.10) e o Espírito Santo é o
nosso Mestre. Colocar-nos como pais, mestres e guias dos homens é usurpar a
glória da santíssima Trindade, arrogar-nos uma autoridade sobre homens que é
privilégio de Deus somente... Há diferentes cargos e ministérios na igreja
cristã, mas estes não afetam a igualdade básica de todos os crentes. É ridículo
quando um cristão clama autoridade paternal, ou discipular (grifo meu)
sobre um irmão na fé, exigindo que ele se comporte como se fosse seu filho,
quando na realidade são irmãos.[1]
[1] STOTT, John, O Perfil do Pregador, p. 78,79.
Esta prática é contrária
também ao princípio do sacerdócio universal de todos os crentes. Todos são
iguais, todos podem orar, todos podem exortar e ninguém deve ter proeminência
espiritual sobre outra pessoa. Neste exercício ministerial ninguém está acima
do outro, ninguém tem supremacia. O ministério é de todos e para todos.
O que torna este “modelo
discipular” mais pernicioso para a igreja de Cristo é ele trás consigo outras
práticas também antibíblicas como a necessidade de se vasculhar o passado do
novo convertido, como se isso fosse a chave para a vitória espiritual. De fato pecados que cometemos hoje devem ser
confessados diante de Deus para que deles sejamos perdoados (1 Jo. 1:9). A
confissão pura e simples é o único remédio de Deus para o pecador. Não há, no
entanto, a necessidade de sessões de cura interior, regressões, imposição de
mãos, unção com óleo, revisão de passado, coisas estas que além de serem
improdutivas para o servo de Deus, alisam o ego de pessoas que se acham quase
redentoras ao ministrarem essas futilidades aos outros.
A ordem bíblica é que o servo de Deus olhe
para frente. Palavras como corramos, prossigamos, avancemos, cresçamos,
alcancemos, permeiam toda a Bíblia (Hb. 12:1, 2: Fl. 3:14; Ef. 4:15). Aliás,
olhar para traz não foi um bom negócio para mulher de Ló (Gn. 19:26). Os filhos
de Israel também sofreram muito por, após libertados, se lembrarem do Egito
(Nm. 11:1-9). Quando Paulo se refere ao seu passado não o faz por julgar que
precisava resgatá-lo para que fosse perdoado, mas para mostrar o que Cristo fez
por ele e as transformações que operou em sua vida (Atos 24 a 26).
Em muitas dessas reuniões há uma ênfase na
ministração de uma pessoa à outra, como se dependesse do que ministra a
operação de Deus no que recebe benção. Esta prática é muito semelhante aos
passes dados no espiritismo e à prática católica de prender os fiéis a
ministrações de homens. É bom lembrar que no Novo Testamento todo crente é um
sacerdote e não precisa de homem algum para ter o seu pecado perdoado e sua
vida transformada (1 Pe. 2:9).
Traumas de infância são uma possibilidade, mesmo para os convertidos, no entanto estes devem ser tratados por profissionais da saúde ou por pastores ou terapeutas com muita experiência na área do comportamento humano. Já se tem notícia de pessoas profundamente doentes por terem sido vítimas de pessoas despreparadas na ciência do comportamento humano, e especialmente espiritualmente, que se aventuraram em mergulhar no interior de outras com suas técnicas de cura interior e regressão. Tratar traumas de infância como traumas hereditários se parece muito com a doutrina da reencarnação. Confundir danos psicológicos com maldição ou praga é no mínimo, falta de discernimento e sabedoria.
Não temos dúvida de que muito do nosso passado invade o nosso presente em forma de comportamentos doentios e medos, no entanto não há orientação bíblica para desenterrarmos os fantasmas do passado para matá-los no presente. Do que ficou para traz devemos tirar lições que nos ajudam hoje, e acima de tudo devemos crer que a Cruz de Cristo alcançou a nossa vida toda (passado, presente e futuro) para que fôssemos novas criaturas.
Somos convocados a levar a Jesus nossos
fardos e dores, sabendo que Ele cuidará de nós e de nossos traumas (Mt.
11:28-30; 1 Pe. 5:7). Antes éramos mortos (Ef. 2:1), agora somos novas
criaturas, tudo se fez novo, as coisas velhas se passaram (2 Co. 5:17). Vivamos
em novidade de vida (Rm. 6:4). Assim, não há ganho espiritual algum em
submeter-se emocional e espiritualmente a um discipulador, na maioria das
vezes, bastante inexperiente, cuja motivação é fazer crescer o número de seus
discípulos e de suas células, obedecendo, por sua vez, ao comando de outra
pessoa que exerce autoridade sobre ela.
É uma corrente destrutiva, destituída de qualquer orientação da Palavra
de Deus.
Continuemos fazendo discípulos, mas para Cristo; continuemos
enfatizando a autoridade espiritual dos líderes (Hb. 13.7), mas não o
autoritarismo que prende o discipulado às ações espirituais do discipulador. A
visão discipular, e mesmo a visão celular, nos moldes que têm sido divulgadas
atualmente, pode encher igrejas, mas não enche o céu; pode tornar pessoas
discípulas, mas não de Cristo. Tal mecanismo humano é fruto de visões humanas e podem fazer perecer os que guiam e os que
são guiados.
Este modelo pode ser deixar
marcas irreversíveis. A linha que separa
a fé da loucura é muito fina. A história
tem demonstrado que é possível passar de um lado para o outro com muita
facilidade. Algumas pessoas em nome da fé pularam de lugares altos, passaram
por cima de brasas, abandonaram seus familiares, se dedicando a exercícios que
vão além dos limites do corpo. Jesus foi tentado certa vez a partir da fé para
a loucura quando Satanás sugere que ele pule do pináculo do templo. Jesus
recusou tal proposta (Mt. 4:6). Pode haver algo de benéfico e sadio em um
sistema que prende uma pessoa à outra
como se fosse uma união vital? Um representante do movimento discipular disse: O discipulado neste modelo cria vínculos
íntimos entre duas pessoas, vínculos sólidos e entranháveis. Não pode haver saúde espiritual em um sistema
assim.
Devemos
entender que a fé cristã também exige raciocínio. O culto cristão é racional
(Rm. 12:1). A própria conversão exige o entendimento de quem ouve a palavra do
evangelho (Rm. 10:9-10). A algumas pessoas Deus deu o dom de mestre, visto que
a igreja precisa deles para que seja instruída corretamente, mas estes são
submissos a Deus e à sua Palavra o temo todo (Ef 4:11, 12).
Há
dois caminhos que levam uma pessoa ao inferno: um é não ter fé alguma (ateísmo
e incredulidade), o outro é ter uma fé errada. Quem seguir por um caminho
errado não encontrará a porta certa jamais.
Clamo
aos pastores, aos líderes, aos que amam a Cristo e à sua Palavra, que não cedam
diante do crescimento numérico deste movimento; não se impressionem com os números
apresentados por eles. O fruto de uma
pretensa “revelação” de um homem, não se compara ao que já está revelado nas
Escrituras sobre o crescimento de igreja.
Devemos lembrar que o conceito neotestamentário de crescimento não
é apenas numérico. A igreja é o Corpo de Cristo e Ele é o Cabeça do Corpo. Da
mesma forma em que o corpo cresce em várias dimensões (biologicamente,
intelectualmente, emocionalmente, etc.) a igreja também cresce em várias áreas,
algumas quantitativamente, e outras, qualitativamente. A ordem bíblica é que cresçamos “em tudo”
(Ef. 4.15), isto é, em todas as dimensões, e dentre elas, está o crescimento
também quantitativo.
A igreja se desenvolve a exemplo de uma grande pescaria (Mt.
13.47,48); como um fermento que levada a massa (Mt. 13.3); como o trigo pronto
para a ceifa (Jo. 4.35); como um grão de mostarda que se transforme em uma
grande árvore (Mt. 13.31,32); como uma luz que penetra nas trevas (Mt. 5.16; At
26.18; 2 Co 4.6); como uma grande edificação (Ef 2.22) e como uma grande
família que cresce pela adoção de novos filhos (Rm 8.15). Em todas estas metáforas de crescimento a
dependência de Deus é fundamental e total. Técnicas humanas não podem alcançar
o resultado que Deus espera. Deus quer que sua igreja também cresça em números,
mas do jeito dele, na força dele e na orientação dele.
Nós não sabemos como, mas
uma igreja cresce pela ação de Deus nela (1 Co 3:6). Por mais que nos
esforcemos, não podemos nos esquecer de que o crescimento vem de Deus.
Movimentos vêm e vão; crescem e murcham; mas o que é de Deus permanece.
Pr. Luiz César Nunes de Araújo.